Leodegária Brazília de Jesus (1889-1978) publicou em vida dois livros de poemas. O primeiro foi Corôa de Lyrios (1906), pela editora Azul, de Campinas, São Paulo. Uma obra de 30 poemas marcada pelo romantismo da época, mas também pela singularidade da escritora. Os poemas são de teor lírico autobiográfico e expressam as suas andanças, dores, amores, amizades e relação com a família.
Escrito entre os 14 e 16 anos de idade, o feito, além de inaugurar a história literária feminina e negra no Estado, demonstra os anos de possibilidade de acesso a professores particulares e à cultura erudita, educação ainda estimulada em casa, pois os pais eram professores.
Corôa de Lyrios chega em um cenário dominado pelos homens e por pessoas brancas, pois estamos falando do início do século XX, há apenas 18 anos após a abolição da escravatura. Os direitos das mulheres eram muito restritos, principalmente, para as mulheres negras. E em Vila Boa, atual cidade de Goiás, não era diferente, imperavam ideais sociais pautados no patriarcado, escravagismo e elitismo.
E choro, sim, e suspiro
Por esses campos que amo.
Não vês aquella campina,
De flores mil adornada,
Tanta palmeira plantada,
Tanta açucena e bonita?
Ao longe, brancas casinhas,
Não vês o lindo horizonte,
O murmurinho da fonte,
E o canto das avezinhas?
Essa campina alacr’ante
É meu berço idolatrado,
É Jatahy adorado,
Essa terra deslumbrante.
Foi nessa terra querida,
Nessa campina formosa,
Que s’escoou descuidosa,
A infância minha florida
Nas tardes bellas de Abril,
Eu deslumbrada, dizia:
Quanta belleza e magia,
Neste canto do Brasil!
A “menina passarinho”, como Darcy Denófrio França a chama, expressa nos versos a sua saudade, alegria e tristezas diante da vida itinerante entre Caldas Novas, Jataí, Rio Verde e Vila Boa. Apesar da crítica da época – composta por homens brancos – entender a obra como não adequada a forma e cheia de sentimentalismo, a professora Dra. Tânia Rezende nos convida, nos dias de hoje, a uma análise que entenda a trajetória e o corpo de Leodegária.
São versos escritos por uma adolescente que coloca na escrita não só a sua percepção de mundo, mas também escreve em sua própria forma, em versos-banzo, como nomeia Tania Rezende. O banzo é, historicamente, uma manifestação da saudade que afeta os corpos negros em diáspora, o desejo e a busca por um lugar que sua humanidade possa ser respeitada.
Nessa percepção de leitura, Leodegária pode ser compreendida enquanto uma poetisa que ousou e se engajou politicamente pela escrita para se posicionar no movimento literário, e até propor outras significações a partir do seu corpo, que tinha e tem cor, história e herança.
Ontem, hoje, amanhã, agora e ainda
E sempre a mesma dor que não se finda,
Sempre o mesmo punhal na mesma chaga
Poema “Ainda e sempre”, Orchideas (1928)
Em 1928, Leodegária publica o seu segundo livro, com 70 poemas, chamado Orchideas, pela editora Ave Maria, de São Paulo. Mesmo 22 anos depois, ainda é considerada a segunda obra literária feminina e negra de uma goiana. Isso porque somente em 1954 tivemos a publicação de Regina Lacerda, com seu livro Pitanga; Yêda Schmaltz, com Caminhos de mim, em 1964; e em 1965, Cora Coralina com o Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.
Orchideas é uma escrita de uma mulher negra de 39 anos e reflete os anos de produção nos jornais, de trabalho como professora, de maturidade para escrever sobre suas dores e amores, e de várias reinvenções durante a busca por tratamento da doença de seu pai. Mesmo com muitas mudanças de cenário, tendo morado no Amazonas, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, além de Goiás, não se esqueceu da vida na cidade de Goiás, onde retrata com afeto e apreço no poema Goyaz.
Patria, tudo me falece
Para erguer teu esplendor.
Lessa
Goyaz querida!
perola mimosa
Destes sertões soberbos do Brasil!
Terra que amo, que minh’alma adora,
Ao ver-te longe, tão distante, agora,
Quero-te mais ainda,
Minha terra gentil!
São obras que destacam a vanguarda de uma produção feminina negra em Goiás, os sertões goianos, que no começo do século XX, ainda era um lugar considerado isolado dos centros de referência literária. A presença e memória de Leodegária contribui para compreendermos a trajetória e as movimentações das pessoas negras, e seus acessos e enfrentamentos em dados espaços de prestígio e visibilidade, desafio que a apagou do cânone literário goiano por muitos anos.
Em 2014, o Ateliê Tipográfico do Centro Editorial e Gráfico (Cegraf) da UFG, foi inaugurado e republicou o livro Orchideas. Em 2011, a Editora Cânone, de Goiânia, reuniu, em Lavra de Goiases III – Leodegária de Jesus, as duas obras de Leodegária, e algumas de suas crônicas e poesias inéditas. Esses livros podem ser encontrados na Livraria Leodegária de Jesus, na cidade de Goiás, que lançou a coleção Leodegária Publicações.
A II Mostra Goiás Nosso Patrimônio tem Cor celebra os 135 anos da imortalidade de Leodegária Brazília de Jesus e ressalta as múltiplas faces de uma mulher negra, poeta, intelectual, professora e redatora de jornais que interferiu na vida sociopolítica da cidade de Goiás em sua época e se posicionou à frente do seu tempo.
Quer saber mais sobre o legado e trajetória de Leodegária?
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